domingo, agosto 02, 2009

Um Caminho.4

As voltas que o tempo nos dá!
Vou escrevendo e descobrindo que a minha história é uma colcha imensa, feita aos quadrados que não casam... mas o que importa é que nos tire o frio...

Ser filho de Professores não é tarefa fácil. Confirmei-o em todos os Amigos e Amigas que partilharam essa realidade. Como não será fácil, seguramente, ser filho de outro tipo de profissionais.
Ser filho de Professores foi dramático na relação com os colegas de escola. O estigma do “favorecido” esteve sempre presente. Os Amigos e colegas dividiam-se entre o respeito a outro que não eu e a amizade por mim. Em momentos calmos não se via a diferença nos comportamentos… mas, em tensão, as recriminações apareciam. Eu nunca fui do tipo de trazer a bola e acabar com o jogo. Aliás, qualquer jogo esteve sempre no lado dos princípios. Um jogo foi sempre coisa séria. Não importa, nem importou nunca o que se joga. Importa como se joga e o empenho que se põe no jogo.
A escolha da escola de um filho, que a mim, Pai unigénito, me pareceu tão rápida (se bem que não fácil) de resolver, foi no meu caso e do meu irmão mais novo, um drama arrastado por mais de quatro anos.
Imagino, ouvi falar, que no caso das minhas irmãs os meandros terão sido parecidos. Com contornos parecidos e enredos também suficientemente caricatos. No meu caso. a novela começou ainda antes dos 6 anos.
No álbum fotográfico (ao lado das 12 ou 13 fotografias da época) é referido que aprendi as primeiras letras aos 5 anos.
De facto, recordo-me muito bem que estive emprestado a uma primeira classe da qual não poderia, de verdade, fazer parte.
Por isso, não valeu! Não passei do filho da professora da escola ao lado (mais uma vez havia a separação entre rapazes e raparigas). Provavelmente atrapalhei mais o trabalho ao Professor que acedeu aos pedidos da minha Mãe do que aproveitei nesse breve período.
E, sendo assim, lá entrei para a escola aos 6 anos. A experiência desde logo demonstrou que havia uma verdadeira separação familiar no que dizia respeito às competências fraternais, ao empenho e ao aproveitamento escolar.
O sucesso conjugava-se no feminino. O meu… ia dando para o caminho!
A Isabel era a revelação extrema. Entrara precocemente para a escola. Transitara rapidamente para um ano à frente e eu, bafejado pela sorte de uma hepatite aguda que me atirou três meses seguidos para a cama, lá consegui esbater diferenças.
Esses três meses foram a terra prometida de qualquer aprendiz de preguiçoso. Tinha uma família inteira aos meus pés.
Irmãos autorizados a brincar comigo no tempo todo do mundo. Uma dieta acima da média doméstica, coroada pelas magníficas torradas com doce do meio da tarde. E… sobretudo isso, até porque o séquito de servidores tinha mais que fazer durante o dia, livros para descobrir.
Atirei-me com zelo e determinação à descodificação do meu primeiro livro dos 5. Por acaso, o número 3, “Os 5 voltam á ilha”.
Era o que estava disponível naqueles dias. Esta história de começar pelo meio teve o condão de me adoçar a boca. Não descansei enquanto não li e compreendi todo o livro. Como não descansei enquanto não parti para o primeiro da colecção e logo depois para o segundo, dando assim início a uma relação apaixonada com a palavra escrita.
Quando voltei à escola, já tinha passado da fase do “ajuntamento de letras” para a leitura mais ou menos escorreita.
Terminei a 1ª classe coxo em algumas matérias, mas perfeitamente capaz em leitura. Menos Mal!
A partir daí perdi a conta aos professores. Ou, pelo menos, deixei de os conseguir situar cronologicamente: o Pereira, o Leal, o Peixoto… Apenas tenho a certeza que, algures entre meados da 2ª classe e meados da terceira partilhei uma professora com a classe do meu irmão mais novo.
Coisa inédita, isso de duas classe com uma só Professora, modernices que atrasaram o meu irmão para algumas matérias, enquanto o faziam precoce noutras.
A nossa Professora comum era completamente fora dos padrões da época. Não batia nos miúdos. Tratava-nos por “meus filhos” e era mais rápida no elogio que na crítica.
Era, para além disso, mãe de um Amigo que, padecendo embora desta sina comum de ser filho de Professora, acumulava ainda com o facto de ter um Pai militar!
As coisas podem ser fantásticas! Penso que algum do meu desdém pelas hierarquias militares se funda nesta fase da minha infância!
Desorientado, flutuei entre o fascínio por exércitos em formação, quais bonecos de chumbo do meu imaginário infantil e uma irritação urticariforme em relação a vozes de comando, impossíveis de discutir...
Um dia gostava de conversar com o Augusto sobre esse Pai tão estranho aos meus olhos de miúdo irrequieto.
Tinha centenas de soldadinhos de chumbo, tanques de guerra, aviões de combate. Tudo impecavelmente alinhado em armários de portas de vidro e, cruel ironia, não podíamos tocar em nada!
Ao menos ao Augusto estava absolutamente proibido! A mim ainda me foi dado o prazer fugaz de lhes sentir o peso e observar à lupa da minha curiosidade toda a cor das fardas e sentir o cheiro do seu chumbo.
Nessas tardes, jurei a mim mesmo que havia de construir o meu próprio exército. E, anos a fio (mais ou menos dois ou três, que no tempo dos miúdos é uma pequena porção de eternidade) eu e o meu irmão fomos gastando os sapatos, poupando os 2$50 do autocarro no regresso da escola.
Dia após dia, voltávamos a pé queixando-nos do caos do transito, justificando a demora, quer chovesse ou fizesse sol.
Foi quando percebi que uma vez encharcado, já pouco pode piorar. Apenas nos candidatávamos a um dia de molho na cama, fungando do nariz e comendo as proverbiais torradas com doce. A pieguice dos homens fazía-se assim: cama quente e papinha da boa. E pouca escola, claro!

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