terça-feira, julho 07, 2009

Um Caminho.3

.......Abrantes foi, portanto, uma casa breve. Um lugar de saída, de começo, de memórias difusas.
.......Agora já não sei colar as coisas no lugar. Não tenho a certeza se as memórias das mãos dadas com o meu Pai, no café, na papelaria do Vítor Borda D’Água, são do antes ou das visitas que depois fomos fazendo a Abrantes.
.......Fica para memória presente que guardo em mim o orgulho de um Pai com o filho, qual troféu, por entre conversas de Amigos.
.......As mágoas ficam para mais tarde!

.......Porque este meu Pai há-de ter sido mais forte do que ele próprio pensava.
.......Porque este Pai que eu lembro dos dias de Abrantes é, ainda hoje, o Pai que eu procuro dar à Joana nos dias em que tento construir futuro e estruturar o seu passado!

.......Este é o Pai que, noite após noite, enquanto me aconchegava os lençóis, me coçava as costas num ritual definitivo. Definitivo porque sempre que o faço, à Joana, me lembro dele. E sempre que me queixo que se trata de um gesto sem retorno me recordo também das suas queixas.
.......Este é o Pai que anos após anos nos preparou o copo de leite da manhã. Preparava-o, personalizado em função dos gostos e caprichos dos 4 filhos que, mais ou menos estremunhados faziam desse gesto o toque de despertar. Só me recordo de quebrar esse ritual no dia em que saí de casa.

.......Mas, porque lá vou eu às voltas para fora do assunto inicial, regresso a Abrantes.
.......Da minha terra natal pouco mais recordo dos dias abaixo dos três anos. E, provavelmente, é assim que deverá ser e sendo assim importa respeitar os caminhos da memória. Neste caso, sinuosos como o dono!
.......Sei que morávamos na escola, onde em cada passagem corríamos em peregrinação todas as vezes que lá voltávamos. Na escola das meninas. Que os tempos não eram de misturas e o sexo oposto era anos a fio visto como isso mesmo…
.......Era nessa escola que a minha Mãe dava aulas. A casa da professora não era magnífica. Já não o era e as visitas posteriores assim o confirmaram. Na memória construída desses tempos, em noites de recordações familiares, estão as armadilhas para os ratos, às dezenas, como impunha a tradição e as minhas fantasias de miúdo (e os contos aumentativos da minha Mãe). Estavam por baixo das prateleiras da dispensa, por baixo de uma escada.
.......Gato não havia… talvez porque o respeito do regime de então pela classe dos professores não se compadecesse com o necessário sustento de quatro filhos. Não eram tempos para encher a barriga a animais de companhia… e nem disso precisávamos porque companhia foi coisa que nunca faltou…
.......No recreio da escola, que era também o jardim da casa, neste jogo esquizofrénico entre o trabalho da Professora/Mãe e os afectos da Mãe/Professora havia um Mundo imenso.
.......Recordo vivamente uma casa de banho com portas de madeira de tinta lascada, igual a todas as casas de banho das escolas que conheci (e foram bastantes!).
.......No recinto, árvores e terra batida. Ao fundo do recreio um muro encavalitado sobre o terreiro das camionetas de passageiros.
.......O mesmo muro onde estive para cair, sendo salvo in extremis pela minha irmã mais velha. O tombo, que na altura me teria parecido imenso, estes anos todos, descontados os centímetros do meu inevitável crescimento, teria sido apenas o suficiente para não estar hoje aqui a contar mais nada.
.......A última vez que olhei o muro (faz quase um ano), reparei que já está devidamente protegido com uma rede muito “europeia” e absolutamente em conformidade com as normas vigentes para qualquer escola que se preze. Aproveitei e confirmei o mito familiar!
.......Teria sido caso para drama inolvidável para o resto da família. Como não foi, o assunto resumiu-se a uns açoites à minha irmã, confirmados durante anos pelas palavras de arrependimento em muitos serões em anos seguintes.
.......À minha Mãe tinha-lhe parecido que a Cristina se entretinha em empurrar-me muro abaixo, numa confirmação tresloucada de um qualquer complexo Freudiano, e, sendo assim, aplicou a regra básica da educação da época, muito em voga no nosso clã: Até prova concludente em contrário, a culpa não pode morrer solteira.
.......A regra era de ouro e confirmava-se muitas vezes. Não foi o caso.
.......A confirmação do arrependimento foi-se varrendo nos últimos anos, nas últimas reuniões de família e o mito transformou-se em lenda!

.......Já não tenho a certeza de nada! E não interessa! Que a memória tem dessas coisas… é de cada um de nós!
.......E isto vale no seu todo! As minhas memórias serão reais?

3 comentários:

Unknown disse...

Insondáveis são os caminhos da memória!...

Contavas, tu, o “mito da salvação” do irmão mais novo. Não pude deixar de sorrir.
Pois, eu vi todo esse filme, bem de longe.
Não fui eu. Foi a Isabel.
Lembro-me da corrida da mãe, em transe, para as ameias que terminavam o jardim [e teriam terminado a tua vida, sem dúvida].

O “acontecimento” foi rápido de mais! Depois de verificar os arranhões dos teus braços esfolados, compulsivamente, tratou de aplicar o castigo à Isabel.
Perante os gritos das alunas – Salvou-o! Salvou-o! – Retrocedeu, sem saber a quem abraçar e a quem louvar! Muito típico da mãe, aliás, como todos os desfechos similares: a Isabel chorava, a mãe chorava…

É certo, que tive o meu quinhão de “salvamentos”!... [por inerência do cargo, de “mãe-delegada”, para o melhor e para o pior…]

Mais tarde, salvei o Jorge de cair da janela do 3º andar da casa da avó… e os meus primeiros óculos [de lentes verdes escuras, que o pai me deixou escolher, pelos vistos, insensatamente…] caíram no cão de pedra e partiram-se.
Sempre tive mais rapidez no contar dos factos, ou teria levado uma sova da mãe [ou terá sido a avó que me deu tempo para explicar?].

Salvei-te de caíres de uma varanda de um 3º andar, já no Porto, em casa de um casal de professores amigos do pai e da mãe. Também viviam na casa da escola, na Praça Carlos Alberto e tinham filhos para todas as idades! Nunca nenhum caiu das varandas homicidas. Nem tu, felizmente.
Dessa vez, fui aclamada! Mesmo em dias de folga, não me faltaria a “consciência de missão”!
Talvez, esta lembrança, já no Porto, se sobreponha à dos jardins de Abrantes… Juntaram-se as duas e fiquei eu, a heroína do castelo e das ameias, sem qualquer mérito!... [e há que fazer justiça, à Isabel… mesmo que te tenha deixado, quase resvalar… mesmo que te tenha salvo, num último momento de medo, pelo castigo, porque eram tempos de castigo e punição... mesmo para aqueles que foram grandes heróis do dia-a-dia!].

Ainda gosto de tomar o leite com café na cama, depois de me acordarem, estremunhada…
Gosto de o beber meia a dormir…
E, ainda ouço o chamamento que dava início à distribuição pelas quatro camas, sussurrante e monocórdico – “Cristina…”
Enquanto o bebia, ouvia os outros nomes, pela ordem primordial em que entraram na minha vida [“Belinha”… stop – “Zé”… stop – “Jorge”… stop… e o silêncio, antes de voltar para nos acordar a todos, “formalmente”!].

Do pai, tenho lembranças sempre boas, que nunca se ofuscam com as máculas dos dias.
Sonho com ele, sempre velho, com as cores de quem está vivo, a gabar-se de todas as dores que lhe passaram, assim, com o milagre da distância e a proximidade nocturna dos meus sonhos.

[beijo…@]

Anita disse...

Brilhante estes regressos ao mundo dos blogs...quero mais!

Eduardo Leal disse...

A mim bem me parecia que não se deve confiar na memória.
É fruto de um complicado cruzamento de caminhos que constroi e destroi o real ao sabor das conveniências do momento.
E, naquela confirmação inevitável da história de quem conta um conto, lá vai fazendo histórias novas em cima de outros pontos...