segunda-feira, janeiro 30, 2006

O sabor amargo... no céu da minha boca.


Às vezes pergunto-me que espécie de religiosidade é a minha que oscila de forma ostensiva entre as mais sagradas certezas científicas e as mais absolutas dúvidas místicas...
À medida que os anos passam e, porque inevitavelmente não podemos deixar de ver o circo do mundo, vamos tomando consciência da ideia de morte e procurando, uma a uma, resolver todas as grandes questões filosóficas, como se fossemos o grande escolhido dum qualquer desígnio supra-humano.
Com os anos, vou aprendendo a respeitar os grandes vultos da história da nossa humanidade e, à medida que tento compreendê-los, separá-los da corrosão do tempo e do sedimento que lhes colocam em cima.
Lembro-me de vários autores que afirmavam, umas vezes de forma subtil, outras de forma grotesca, que na hora do momento final, todos se convertem à religião que está mais à mão...
Não tenho dúvidas que nós, seres humanos, como provavelmente outros animais, precisamos de ter fé.
Uns acreditam em Deuses crueis e castigadores, outros acreditam em Deuses super-protectores, outros em Divindades à sua própria imagem e outros em verdades científicas mais ou menos dentro do prazo de validade.
Li há dias um livro muito interessante, de um dos meus autores preferidos, Amin Maalouf, que aborda um tema muito actual, provavelmente sempre actual: A relação entre as várias religiões e a forma como se ligam umas às outras.
O tema é contemporâneo, apesar de a acção se passar há mais de mil anos, na época do início do declínio Romano.
Hoje como ontem o mundo contorce-se em torno de formas de ver o mundo, de perspectivas diferentes sobre a realidade...
Trata-se de um romance histórico, sobre a vida de Mani, que deu origem à expressão "maniqueísmo", mas que, como se pode compreender pela leitura, é absolutamente o oposto do sentido em que usamos hoje este termo.
O termo "maniqueísmo" é usado para ilustrar uma concepção do mundo a preto e branco, uma forma de encarar as coisas, afirmando que ou se está em baixo ou se está em cima, resumindo, onde as coisas têm que ser "bem" ou "mal".
O que mais me impressionou neste livro - Jardins de Luz , Amin Maalouf - para além da forma notável como está escrito e para além do testemunho de uma vida (e de uma morte) em tudo comparável à dos grandes enviados da sabedoria, é o facto de se conseguir encobrir durante séculos uma história tão notável.
Mais ainda... a forma como a "situação" conseguiu distorcer de forma tão grosseira, mas eficaz, a História por detrás da história.
É triste! Como é triste verificar que conhecemos um Cristo, muito provavelmente bem diferente daquele que viveu na Galileia, um Buda distante das suas ideias originais e por aí fora.
Daqui a mil anos que dirão sobre Ghandi?
Que histórias contarão sobre Martin Luther King?
E que saberemos nós, hoje, sobre o que se passa realmente à nossa volta?!
Como poderemos nós fugir a esta grande trama e encontrar os caminhos mais seguros?
Há dias assim... em que acordo e adormeço com um sabor amargo, no céu da minha boca.

13 comentários:

nunofigueiredo disse...

Antes de mais parabéns pelo excelente post.

Estive duas horas em frente ao PC e não saiu nada! Por isso parece que o sentido proibido parou.

A nossa relação com a fé tem fases que coincidem com a nossa idade.
Lembro-me que em criança tinha um medo terrível da morte com choro misturado na lembrança. Hoje, com trinta e sete anos, lembro com calma e para meu bem-estar tento ter fé.

Quando estudava “ Os Lusíadas” havia uma parte que tem uma frase que sempre guardei: “ que da lei da morte se vão libertar” ou algo assim parecido. Na altura não percebia. Fácil foi perceber que ficavam na memória pelos feitos.

Tento na minha vida agir para que fique pelo menos na memória dos meus, saber que a minha filha não me vai deixar morrer para os meus netos. Se conseguir ficar também na dos meus amigos então é porque valeu a pena ser amigo.

Quantos de nós dizem que não são religiosos e quando chega a aflição “ai meu deus ajuda!”. Pois somos todos iguais.

O amigo desculpe o espaço gasto. Mas há dias em que também eu acordo e deito assim.

Deve ser da idade. Será que tem que ver com aquela da idade anacrónica!

Abraço!

JL disse...

Depois de ler o excelente artigo que escreveste,não me sai da cabeça uma frase que li algures, há uns tempos e que transmite uma ideia próxima a isto: há pessoas que vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido. Seguramente, não é o que se passa contigo.
Questiono-me muitas vezes sobre a forma como muitas vezes vivemos: se somos assim sabendo que amanhã já não estaremos como seríamos se tivessemos bebido do Santo Graal a Eternidade?

JL disse...

O Nuno Figueiredo parece que gostou da expressão: idade anacrónica :-)
Um abraço

Eduardo Leal disse...

Exactamente, Amigo e Companheiro!

Os termos foram criteriosamente escolhidos (as sagradas certezas científicas e as mais absolutas dúvidas) porque pretendo identificar em mim o que há de contraditório no ser humano... porque apesar de gostar muito de mim mesmo... sou como os outros.
O maniqueísmo é o caminho mais fácil, é aliás o caminho que as grandes religiões trilham por sistema. É o caminho das grandes ideologias (se não estás com Salazar estás contra Salazar ; se não estás com a revolução estás contra a revolução).

Difícil, difícil é escolher um caminho de conciliação.
Mas é por aí que eu gostaria de ir... se for possível...

Ivone Medeiros disse...

Todos temos dias assim!

bj

Eduardo Leal disse...

Existe... deve existir... claro que existe!
Não é provavelmente o mais fácil. Seguramente não tenho vocação para fazer a caminhada... mas tenho pena.

Vica disse...

A busca do porquê é a busca de Deus, não achas? Porque se Deus não existe, aparentemente não há um porquê. Digo Deus referindo-me a o que pode estar por trás da existência... Gostei muito do teu post e fiquei com vontade de ler este livro, vou ver se consigo encontrá-lo. Beijos.

Eduardo Leal disse...

e depois diz-me que achaste do livro...

JL disse...

Julgo que a imagem que colocaste pretendeu, também, completar o artigo com o meio termo que procuras e que au apelido de equilíbrio. No fundo, é nem mais nem menos do que o yin e yan orientais. É o equilíbrio entre o bem e o mal, partindo do pressuposto que todos os humanos são uma amálgama destes dois conceitos. E é a busca do equílibrio desses dois pesos que pode resultar naquilo que dizia um pensador (de quem não recordo o nome,mas não faz mal porque ele também não recorda o meu): Sei que não vou mudar o mundo com o meu comportamento, mas sei que posso fazer com que haja um canalha a menos à face da terra.

Em relação à religião sabes qual é a minha opinião. Há, contudo,quer se acredite em Deus ou não, uma figura histórica que é incontornável: Jesus Cristo. E não vale a pena compará-lo a grandes filósofos como Sócrates e Platão, por exemplo. Nenhum consegui perpetuar o seu nome, a sua obra, a sua "filosofia" por tantos anos e cativar tanta gente como o próprio Jesus. Se ele não era Filho de Deus, então foi o produtor da maior estratégia de marketing da humanidade e aquela que deu maiores frutos e angariou mais consumidores. Opto, como sabes, por acreditar que foi o Emanuel - Deus connosco!
Um abraço

Zel disse...

Como não podia de ser mais um grande "post". Razões religiosas e económicas, movimentam guerras e conflitos, quando se penetra nela : Qual é o melhor caminho? Quem está correcto? Complicado!

"Há dias assim... em que acordo e adormeço com um sabor amargo, no céu da minha boca."

Grande abraço

Eduardo Leal disse...

João,
De facto o que deveremos procurar é o equilíbrio, quer espiritual (intelectual...), quer físico.
Quanto ao facto de Jesus ser uma referência incontornável, sabes que também acho, mas... haverá com toda a certeza vários Jesus Cristos.
O Jesus que conhecemos na nossa sociedade está já muito longe do Jesus inicial.
Esse, era com muita probabilidade, bem mais próximo de Mani, de Buda e de outros profetas.
Estaria com altíssimas probabilidades muito distante do Jesus da ordem dos autos de fé, das ordens que partiram para as cruzadas em seu nome, de todos aqueles que, sem dúvidas, nem hesitações, se apressam a atirar pedras aos seus semelhantes.

Quanto a Sócrates e a Platão (e sabes quanto aprecio o segundo e simpatizo com o primeiro), são figuras diferentes, comparáveis a Einstein, a Leonardo Da Vinci, Galileu, etc.
Críticos para o desenvolvimento das nossas capacidades intelectuais, técnicas e científicas, mas sem serem portadores de uma mensagem (pelo menos sem serem fundamentalmente portadores de uma mensagem).

Helder Ferreira disse...

"O maniqueísmo é o caminho mais fácil, é aliás o caminho que as grandes religiões trilham por sistema."
Caro Eduardo,
não é verdade. Aconselho (se me permites) a leitura da enciclica de Bento XVI Deus Caritas Est em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est_po.html
e da Centesimus Anuus (?) de JPII.
Nota: sou agnostico.

Unknown disse...

Há mesmo dias assim... e é nesses dias que costumamos refletir mais sobre as "verdades" do mundo... é pena que nunca chegamos a uma conclusao exata, mas pelo menos, dentro do contexto da nossa crença, acabamos achando que encontramos resposta para todas as nossas dúvidas... até que surjam outras, claro! :)
Bjos!