terça-feira, abril 24, 2007

A memória curta....


É provavelmente uma defesa natural do "homo lusitanus".

Uma forma inconsciente de ultrapassar a angústia existencial, este estar aqui sem conseguir mudar o mundo, ao menos o seu pequeno mundo interior...

Quando era miúdo as realidades eram outras. Já havia fome, mas, ao contrário do regime, era muito mais democrática.
Os miúdos de barriga cheia eram menos e transportavam com enfado e desdém os seus farnéis para a escola (na altura muito mais pública).

Quando à hora do lanche se abriam as sacolas para tirar o pão com marmelada ouviam-se alguns colegas, de imediato, com a tradicional expressão tripeira "dá-me uma buca".

E a gente dava. Dava uma, duas ou três até não ter mais, porque ao chegar a casa havia comida na mesa... e para outros, nem sempre ou poucas vezes.

A fome tinha rosto de criança... era subtil, de riso fácil e revolta tranquila.
Tinha sapatos furados, quando havia.
Não tinha sacola e livros nunca... e mesmo escola...

Repetia os anos sem rancor pelo sistema e carregando a cruz das aprendizagens difíceis, como se se pudesse aprender de barriga vazia.
E calava-se. Aguentava sossegada que o Pai era tirano e tinha mau feitio...

A miudagem aguentava, nesta alegria pobre e, talvez por isso, alucinada...

E assim, quando chegou Abril, eu achei que era tempo de mudança.
Não tinha, até aí, tido a necessidade de criticar o sistema e sofrer na pele a falta da Liberdade...
Era miúdo e as minhas preocupações eram outras. Vivia ainda no tempo de D'Artagnan e Lagardere... e obcecado pelos livros dos cinco e pelos gelados Olá e Rajá nas praias possíveis da Leça da Palmeira.

A guerra colonial tocava-me ainda marginalmente, quando os Tios de Angola nos visitavam, de longe a longe (carregados de novidades japonesas) e quando a minha mãe nos seus suspiros aflitos nos imaginava, ainda pouco homens, no combate contra os terroristas...

No Natal percebíamos que já havia mães a viver a angústia ao ouvir as mensagens de Natal.
E tínhamos Fátima em directo pela TV.
Dias de Maio intermináveis com a família reunida à espera de um andor...

E gente de joelhos esfolados, em sangue, a cumprir as promessas dos outros... a prometer pelos outros... pelas vidas que não lhes pertenciam...

Por isso, também, gostei dos tempos de mudança...

Passaram muitos anos... desde Abril de 74. E continuo a lembrar com uma lágrima nos olhos os dias que vivemos.
Nas mudanças mais subtis - como o copo de leite para todos na cantina do nosso ciclo preparatório - como nas mais profundas...

Quantos de nós, hoje, imaginariam um ano inteiro de trabalho sem férias pagas?!
Quantos de nós imaginariam não poder discutir a temática das pensões de reforma, por não haver pensões de reforma...

O País era pobre. Continua pobre...

Mas a nossa maior pobreza, é, seguramente, a nossa fraca memória!

E por isso, hoje, quero lembrar Abril! Lembrando o dia 24 e o dia 25!
Porque um só faz sentido a seguir ao outro!
Porque afirmar a liberdade importa, sobretudo quando sentimos a injustiça do silêncio.

25 de Abril, não se nega. Goste-se ou não do País que daí nasceu, é por ele que podemos, ainda hoje, gritar o que pensamos!

Hoje... mesmo que nos apetecesse... ninguém cala os outros!
E ninguém nos cala a nós!